Proclamada a Independência da Contabilidade. O que isso muda na história de amizade entre José e João?

José e João se conheceram ainda quando crianças. Se tornaram amigos e cresceram juntos. Compartilhavam do mesmo gosto para quase tudo, da comida à música.

A verdade é que José tinha uma certa influência sobre João, pois eram dele as iniciativas para tudo o que era novo. Se José provasse um prato novo e falasse que era bom, João o seguia sem questionar.

Mas não parava por aí, José gostava de música clássica, João também. Na juventude, quando viajavam, era José que escolhia o lugar e também quem planejava os roteiros.

Um certo dia, João conheceu Carlos, os dois ficaram amigos e começaram a passar mais tempo juntos. Carlos tinha um estilo de vida muito diferente de José e João, ele não comia arroz e feijão todos os dias e gostava de Rock.

João, agora com uma outra referência, passou a adotar o estilo de vida similar ao de Carlos, começou a ouvir Rock e a desenvolver hábitos alimentares parecidos.

Você deve estar se perguntando, o que isso tem a ver com o tema do artigo?

Pra mim tudo… então deixa eu lhe explicar.

Essa pequena história é uma breve analogia para introduzir o que vou abordar nesse artigo. Vale lembrar que gosto não se discute, cada um tem sua preferência e isso sempre deve ser respeitado, mas não é disso que vamos tratar.

A relação entre José e João é uma metáfora que guarda a mesma relação que existe hoje entre as práticas contábeis e as práticas fiscais adotadas no Brasil, ou seja, o velho dogma contabilidade versus fiscal.

Não é novidade que no final do ano de 2007 foi publicada a lei 11.638 que possibilitou a convergência das normas contábeis brasileiras com as normas contábeis internacionais.

A partir de então, a contabilidade tomou um novo rumo, uma nova cara, um novo formato e principalmente, seguiu um caminho que na minha opinião é sem volta.

Todos sabemos que na era da lei 6.404/76, a famosa lei das sociedades anônimas, a contabilidade sofria uma forte influência de diversos órgãos e entidades, tais como CVM, Receita Federal do Brasil, etc.

Notadamente, aquele que mais influenciou foi o fisco, pois dada a ausência de normativos contábeis para determinados assuntos na época, observavam-se e refletiam-se as regras fiscais na contabilidade. Também é correto afirmar que no Brasil sempre tivemos duas contabilidades, a chamada contabilidade fiscal e a contabilidade societária (sem falar que existem as contabilidades regulatórias, mas não vamos falar disso nesse artigo).

Seus propósitos sempre foram diferentes e se eu puder resumir em uma pequena sentença suas finalidades (sei que podem existir outras, não me crucifiquem, mas vou focar em apenas uma para fins didáticos), eu diria que a contabilidade fiscal é o olhar sob a perspectiva e interesses do fisco e tem por finalidade a apuração e arrecadação dos impostos, enquanto a contabilidade societária trabalha sobre uma perspectiva mais voltada ao investidor, ao acionista, ao dono, tanto que, é com base nela que eles são remunerados por meio de distribuição de dividendos ou de lucros, conforme o caso.

Antes da lei 11.638, a contabilidade societária se confundia muito com a contabilidade fiscal, pois como já mencionei, a fiscal influenciava a societária e as diferenças entre elas eram facilmente percebidas e controladas.

Na verdade, muitos tratamentos eram iguais, tanto no contábil como no fiscal, o que acabava não gerando diferenças em seus registros, a citar como exemplo, o cálculo e registro das depreciações e amortizações de ativos de natureza permanente.

Com a convergência das normas contábeis brasileiras para as normas contábeis internacionais, após a publicação da lei 11.638 no final do ano de 2007, José e João, ou melhor, Fiscal e Contabilidade, passaram a não andar mais juntos e a não ter mais influência nas atitudes um do outro.

Como diz um tributarista amigo meu, a contabilidade proclamou sua independência nessa data e passou a seguir um caminho diferente e a experimentar uma nova realidade distinta daquela que estava acostumada.

O que mudou de verdade?

Para quem estuda as novas normas contábeis aplicadas no Brasil após a convergência com as normas internacionais, sabe perfeitamente que a mudança foi radical. Estávamos acostumados a seguir regras, checklists, etc. e passamos a não ter mais a receita de bolo pronta, mas a ter que aplicar uma contabilidade por princípios.

Isso foi pra mim uma grande disruptura na profissão contábil. O contador deixou de ser um mero aplicador de regras e passou a ter que entender os princípios e aplicá-los sobre as transações, sempre observando sua essência.

Quando se aplica regras ou um check-list, podemos afirmar que duas pessoas ao aplicá-lo chegarão em resultados próximos ou até mesmo iguais. Quando se trabalha com uma ciência com base em princípios e interpretação de essência sobre a forma, é possível afirmar que duas pessoas ao analisar a mesma transação, podem chegar a conclusões diferentes.

A ciência contábil, com esse novo formato de trabalhar e pensar, se aproxima do Direito que sempre foi tão belo e diversificado no quesito “interpretação”.

No direito, se você colocar 10 advogados para interpretarem um caso e pedir para formularem suas teses e conclusões sobre o mesmo, é bem provável que ao final você tenha 10 teses e conclusões diferentes da mesma situação. Alguma delas estará errada? Não, apenas são pontos de vistas sob perspectivas diferentes do mesmo assunto. Cada um irá defender seu posicionamento e muito bem fundamentado usando todos os princípios do direito.

Entendeu onde eu quero chegar? A contabilidade é uma ciência diferente daquela que aplicávamos antes de 2007. O contador tem em suas mãos uma nova ciência poderosa, rica em detalhes e interpretações, com um grau de complexidade elevado e que pode ajudá-lo a chegar a um outro patamar como profissional.

Um caminho sem volta.

João passou a seguir Carlos, no nosso caso, a contabilidade brasileira passou a seguir as normas internacionais de contabilidade e esse é um caminho sem volta.

Por conta das interpretações e novos conceitos trazidos pela nova contabilidade, somado ao surgimento de novas normas contábeis que ocorrerão com certa frequência, novas diferenças surgem e surgirão ficando cada vez maior o distanciamento entre contábil e fiscal.

É como se José e João andassem juntos por uma estrada e em determinado momento da caminhada se deparassem com uma bifurcação onde um segue para a direita e outro para a esquerda. Quanto mais avançam, mais distantes ficam um do outro.

É assim que vejo o futuro entre contábil e fiscal, cada vez mais distantes, principalmente considerando tudo o que o IASB (International Accounting Standard Board), órgão responsável por emitir as normas internacionais de contabilidade, tem planejado de mudanças para os anos que estão por vir.

Mas até onde vai esse distanciamento? Não sabemos, pode ser maior ou menor. Essa distância depende também da reforma tributária que está em pauta para aprovação.

É muito claro para todos que atuam com contabilidade, que a realidade das novas normas contábeis, que já estão em vigor a mais de 10 anos, ainda está muito distante para muitas empresas.

Hoje, as Companhias abertas e as empresas de grande porte que são auditadas, certamente estão totalmente aderentes à nova contabilidade, realidade essa distinta das médias e pequenas empresas e até mesmo de empresas de grande porte que não são auditadas.

O que tenho visto é que ainda estamos muito distantes da realidade dos países que aplicam de forma mais assertiva as normas internacionais, pois a aderência no Brasil, excetuando as Companhias abertas e empresas de grande porte que são auditadas, ainda é muito baixa.

Diante do novo rumo da nova contabilidade Brasileira, que tomou um caminho diferente da chamada contabilidade fiscal, precisamos entender e disseminar o conhecimento a respeito disso para que seus benefícios, já percebidos em diversos outros países ao redor do mundo, sejam compreendidos pelos empresários e usuários de informações contábeis no Brasil.

Lembrando que, se não houvessem benefícios, não haveriam mais de 140 países utilizando.

Valorizando a classe dos contadores no Brasil

Em paralelo a isso, também é momento de nossa classe de contadores usar essa disruptura das regras contáveis trazidas pela publicação da lei 11.638 para se promover e valorizar.

Todos nós contadores, sabemos que nossa classe sempre foi vista como alguém que só traz notícias ruins (ex: DARFs e impostos a pagar) e que não agrega valor ou inteligência aos negócios.

É hora de virarmos essa página e a independência da contabilidade é um trampolim para isso, pois coloca literalmente o contador em outro patamar.

Em relação a essa valorização do contador, fala-se muito hoje no mercado sobre contabilidade consultiva, um movimento que eu gosto muito e que busca mudar o comportamento do contador para uma atuação mais estratégica e de geração de valor para as empresas.

Na essência, a contabilidade consultiva (minha interpretação), consiste em entender a dor dos empresários e ajudá-los a tomarem melhores decisões através da interpretação e análise dos números registrados na contabilidade.

De forma geral, contabilidade consultiva não é algo novo, pois a contabilidade na sua essência sempre foi consultiva, mas a mudança de “atitude do contador” com todo esse movimento que hoje muitos buscam, é sim algo novo e que tem que ser valorizado.

Todo o conceito de contabilidade consultiva pode e tem ajudado o contador a se valorizar, mas eu faço um alerta:

Como aplicar essa contabilidade consultiva de forma correta se os números contábeis trabalhados pelas empresas, aqui me refiro às pequenas e médias empresas, ainda não estão aderentes à nova contabilidade e consequentemente não refletem a essência das transações?

É preciso trabalhar nas duas frentes. Fica aí minha observação para reflexão.

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